A foice, metáfora comunista, representa a igualdade, a democracia, a luta. A simbologia que a envolve facilita o processo: ele não precisará pousar de mártir, erguê-la de forma segura, prepotente. Basta levanta-la o mais alto possível, para que todos possam avistá-la e segui-la. E é exatamente isso que faz de modo conformista. Ela é o guia. Ele, o mastro.

Cabeça baixa, olhar fixo em qualquer direção próxima ao chão… o pensamento, distante, aproveita a imutabilidade da ação para se demorar em especulações futuras. Ele sabe que é ilusório pensar na chegada como o marco do fim. Na realidade, a chegada representa apenas o começo.

Depois da chegada, tudo irá mudar.

Depois da chegada, tudo sempre muda.

A chegada cega. O momento da consagração inexiste. Todo o esforço físico de até então pressagia um maior, aquele que realmente importa, aquele que deve ser vencido a qualquer custo.

A porteira é o empecilho que resta. É a passagem que divide, reparte. Depois dela, o que lhes espera?

Ele não sabe. Divaga, imagina, supõe. Mas não vai longe. O receio de se iludir, seja para o bem ou para o mal, o impede de ir adiante. Pensar em tudo não o levará a nada. Basta andar, um passo após o outro, sempre em frente, sem nunca esquecer de levantar o braço o mais alto que puder. Todos precisam ver a foice. É ela que os incentiva a continuar.

Ela é o guia.

Ele, somente o mastro.

Pandas nunca me enganaram.

As pessoas insistem em infantilizar esses bichinhos, como se fossem a criatura mais inofensiva do reino animal. Mas eu nunca cai nessa. OK, confesso que sinto certa sensibilidade quando vejo esses documentários sobre o insucesso na reprodução de pandas que inevitavelmente culmina para o aceleramento do já alarmante processo de extinção dessas fofuras pintadas.

Me corta o coração. Mas pessoal, peraí. Não é porque os pandas têm aquela cara de fofo que a gente precisa tratá-los como se fossem babacas. Ninguém aqui é emo pra ficar tratando um bicho daquele tamanho como se fosse nosso ursinho de pelúcia.

Se coloque no lugar de nosso amigo panda. Você é um urso, selvagem, grande, másculo. Se quisesse, teria força suficiente para estraçalhar inúmeras espécies, inclusive a humana. Você está preso em cativeiro, regime fechado, para ser inescrupulosamente exposto aos visitantes. Mas você fica na sua. Come seu bambu enquanto arquiteta planos mirabolantes de fuga, que sonha em pôr em prática algum dia. De repente, chega uma chinesinha com cara redonda igual à de uma Trakinas, com aquele cabelinho chanel e a franja escorrida, que aponta pra você e diz “Nhom!”*. Pode?

Deprimente. É por isso que os pandas se recusam a procriar. Isso é um ato de revolta (similar aos dos cubanos em greve de fome), em busca de um respiro de dignidade!

Vamos cooperar. Parem de tratar um panda como se ele fosse um bundão. Colabore, para a não extinção da espécie (queria ver você, garotão, ter pique sexual se todo mundo te tratasse como uma frutinha)!

Tá, eu sei que é um tanto difícil ter uma imagem mais heróica da espécie. Mas eu ajudo. Uma dica é ver (exaustivamente) a animação Kung Fu Panda, da Disney, que mostra a trajetória de um panda em busca de sua consagração como exímio lutador de artes marciais.

Pra você ver: até a Disney, mundialmente reconhecida por tornar criaturas como leões, ratos e feras em personagens amáveis, se concentrou em dar um ar mais agressivo ao panda (é de se pensar no quanto estamos subestimando a fúria da espécie).

Pra terminar, aconselho também que assistam aos vídeos criados por uma agência de publicidade do Egito. A série ganhou o leão de prata em Cannes este ano. E mostra, de forma definitiva, que um panda pode, sim, perder a passividade de vez em quando. No caso, quando as pessoas se recusam a provar o queijo da marca “Panda” (no final dos comerciais, a frase dita quer dizer “nunca recuse um queijo Panda”).

ADVERTÊNCIA! : Cenas fortes. Retirem os pandas da frente do seu computador. As crianças, não. Elas merecem ficar, para saber do que um panda é capaz (sobretudo as chinesinhas de cabelo chanel escorrido que fazem “nhom!” ao vê-los no zoológico)

É isso: Força. Fúria. Garra. Pela preservação dos pandas.

*Traduzido para o português para a melhor compreensão dos leitores.

Minha história com Clarice é antiga. Há uns cinco anos, fui intimada a ler A hora da Estrela, pela toda-poderosa Fuvest, que escolheu este e tantos outros livros para serem cobrados no vestibular.

Distante de ser esta a única razão para meu fracasso acadêmico, o fato é que não li o livro. O descompromisso deveu-se, em parte, ao meu vergonhoso desempenho escolar da época (que minha consciência apressava-se em abrandar, dizendo que tanto esforço para um resultado tão imprevisível não valia a pena). Mas  muito da minha indiferença à Clarice credita-se também aos meus professores.

Sempre que se falava em Clarice Lispector na sala de aula, apressavam- se em enaltecer sua genialidade mas sem nunca esquecer de frisar o quanto seus textos eram difíceis. Eu absorvia obedientemente tudo o que me diziam e, por isso, acabei temendo as incongruências da escritora. Eu temia Clarice.

O tempo passou e meu medo ficou para trás.

(Agora, supostamente, entra a parte em que eu conto como foi minha experiência quando, finalmente, desvendei a indesvendável Clarice Lispector. Certo?)

Errado.

Agora é a parte em que eu tomo coragem e confesso: para o horror de todas as pessoas com um mínimo apreço pela literatura nacional, e assombro geral da maioria dos meus amigos cujas experiências literárias superam a minha sem esforço algum, eu nunca li Clarice Lispector.

Sim! Eu nunca li Clarice. Não foi só meu assombro pela escritora que ficou para trás mas também toda a sua figura. De repente, esqueci-me dela. Mas – e essa verdade é inconstestável – sempre que seu nome era citado, eu me repreendia por ainda não ter tido o deleite de provar Clarice.

E ultimamente essa vontade não me deixa. Tudo começou quando um amigo me falou de um conto genial da autora. Fiquei com água na boca. Ele ficou de me passar. Passou. Mais uma vez, o tempo não trabalhou ao meu favor e eu não toquei no conto (que permance até hoje intacto na minha caixa de e-mails, com a marcação de “não lido”).

Hoje comecei a ler o Inventário das Sombras, de José Castello. Logo no primeiro capítulo, “ela”. Imponente. Devastadora. Um perfil perturbador de Clarice Lispector, revelando-se e ocultando-se nas palavras de Castello.

Assim como eu, Castello também a temia. Diferente de mim, que recuei, ele seguiu em frente tentando (em vão) desvendá-la.

Me cantou a bola: “só é possível ler Clarice Lispector tomando seu lugar – sendo Clarice”.

Agradeço o conselho e secretamente minha vergonha transmuta-se em privilégio.

Como no prólogo da minha estimada edição de Dom Quixote de La Mancha, que consola o leitor espanhol que não leu o clássico nos tempos de escola, julgo que, neste caso, o atraso significa um ganho. Uma oportunidade de desfrutar Clarice com uma idade mais madura, livre das ideias pré-concebidas que tipicamente envolvem grandes obras literárias.

Clarice Lispector é um tipo de mito pra mim. Um mito indesvendável e, talvez por isso mesmo, irresistível. Hoje eu não a temo mais. Antes disso, a anseio. Anseio ser Clarice.



*Observação (atualizado em 3/7/10): Com extrema satisfação lhes informo que o e-mail da minha caixa de entrada tem uma marca de “não lido” a menos. Hoje, após 21 anos, sete meses e oito dias, finalmente li Clarice Lispector.  O que achei da experiência? Ah, esta é uma outra história…

Dor. Desilusão.

Durabilidade? Difícil dizer.

Discordei. Dosei.

Decidi: “denso, dogmático, danoso”. Desencadeador de “dramas, dúvidas, delírios”.

Desertor. Diabólico. Divino.

Dureza!

Dançamos, dormimos, duelamos.

Dentro daquelas doses, deselegância.

Devassidão. Disritmia. Dormência.

Doeu. Durante dias. Depois, dane-se.

Direito de discutir, de desentender.

De deixar.

Danada? Despudorada? Digna.

Escutei-o conversando com a mãe. Queria sentar ao meu lado. Não, na verdade, queria sentar no meu lugar, para que a mãe ocupasse o outro assento e ele pudesse encostar a cabeça nela um pouquinho.

Mas eu estava lá. E, como não tinha jeito, ocupou o assento vago e deixou a mãe no outro banco.

Pouco me importei com a situação. Continuei com a leitura. Em poucos minutos, um muxoxo. Ignorei. Logo em seguida mais um, um pouco mais alto, mas ainda inteligível.

Na terceira vez, não resisti. “O quê?”. “Xhshsahs” (é a tradução mais fiel do que pude entender). “Hã?”, insisto. “Xhshsash”, repete. Eu desisto. Ele, não. Do nada, dispara:

– Você vai pra igreja?
– Não. E você?
– Eu vou.

Claro, não sabia o que responder. Entrei no jogo.

– Todo dia?
– Não, só aos domingos.
– Ah… que bom.

Ele muda de assunto. “Olha minhas figurinhas. Tenho um monte de álbuns: o da Copa, Hot Wheels, Cars…”, “Sério? Deixa eu ver” – falo, já pegando o bolo da mão dele.

-Tem bastante repetida. – Ele meio que se desculpa.
-Mas você não troca? – Arrisco.
-Não.
-Ah… por quê?
– Porque não. Meu álbum já tá completo.
– Todos?
– Não. Só do Hot Wheels. Olha, serve de figurinha e de tatuagem também. – ele arregaça a manga da blusa azul e me mostra o carrinho amarelo, já meio gasto, que tá “tatuado” no braço direito.
– Que bonito! Você tem quantos anos?
– Oito.
– Qual é o seu nome?
– Matheus.
– Legal, Matheus.
– Você estuda? – Mais uma guinada de assunto.
– Sim, tô indo “pra escola” agora. E você?
– Eu não, eu tô indo tirar minha carteira de identidade.
– Ah, é? Poxa, que legal! – Imaginei aquela carinha numa foto 3×4. Ele sorriria? Choraria? Acho que faria uma expressão de adulto, o perfeito “homenzinho”. Fofíssimo.

Somos interrompidos:  “Matheus, vamos. A gente desce no próximo”.

Já estava me acostumando com o papo. De repente, me vejo frustrada com a despedida precoce.

– Você que é a mãe do Matheus?
– Sou, sim.
– Parabéns.
– Obrigada.

Eu queria completar com um “seu filho é…”. Mas, o que falar daquela criaturinha de oito anos que puxa assunto com uma estranha pra perguntar se ela vai à igreja?

– Tchau, Matheus. Foi um prazer.
– Tchau.

Acho que algumas pessoas, sabe-se lá o motivo, precisam passar pela sua vida. Em menos de quinze minutos, o Matheus passou pela minha. E um pedacinho dele vai ficar aqui pra sempre.

Primavera

O tempo passara e ele sequer deu-se conta. Um turbilhão de sensações arrebatadoras o invadiam naquele momento. Lembranças recentes misturavam-se às antigas e formavam uma nova realidade, de cronologia abstrata e duvidosa.

Estava sentado numa cadeira de balanço tão desgastada quanto ele. O ruído característico do movimento incomodava a todos, mas ele não se importava. O ir e vir era estranhamente natural, quase uma extensão de seu corpo. E embalava suas recordações.

O primeiro amor veio à tona. Riu de si quando recordou a certeza que tinha de que seria eterno. Lembrou-se de como tudo terminou e, depois, de como esquecê-la foi mais fácil do que pensou que seria.

Verão

Revivia em sua mente as emoções. Era como se estivesse lendo um livro de sua própria história, folheando páginas que, de tão bem descritas, o faziam imaginar perfeitamente as cenas.

O enredo fantasioso o conduzia, agora, à época da adolescência. Amargurou-se ao pensar o quanto o período da guerra prejudicara seu relacionamento social já que, dentre tantas preocupações prioritárias não constava, obviamente, a de fazer um adolescente se dar bem com os colegas da nova escola.

Estaria sendo egoísta ao pensar unicamente em si, com tantas questões mais relevantes a ser consideradas numa guerra? Foda-se. Era o que sentia e ponto. Cansara-se das concessões sociais que tivera de fazer no decorrer dos anos. Sentiu-se no direito de, ao menos em pensamento, ser politicamente incorreto.

Outono

Seguiu-se uma onda de recordações aflitivas. O desaparecimento da irmã e a morte do pai trouxeram consigo uma sensação melancólica, que lhe oprimia o peito intensamente. De súbito, retornou àquele período, vivenciando novamente o sentimento doloroso.

De modo mais pragmático, refletiu acerca do erro que fora seu primeiro casamento e da felicidade quase que mecanicista com que vivera o segundo.

Queria entender por que, dentre tantos momentos agradáveis, eram justamente os negativos que viam à tona. Começou, intuitivamente, a elencar os sofrimentos, classificando-os por níveis de intensidade e durabilidade.

Discussões, mortes, mágoas, rupturas. Em sua vida, essas palavras sempre estiveram presentes. Em alguns momentos, chegavam todas de uma vez. Em outros, vinham separadas, após um longo período de latência que o levava a crer, erroneamente, que enfim estava sendo feliz.

Inverno

Antes não era assim. A apatia que em alguns momentos o atingia era rapidamente aplacada, diante da certeza de que o futuro lhe seria promissor. Assim, toda vez que sentia certo descontentamento com a realidade, confortava-se ao pensar que as coisas mudariam.

Afinal, tinha tempo.

Mas o tempo passou. De forma arrebatadora. Implacável. As frustrações pessoais e profissionais o transformaram num homem amargurado. A alegria juvenil e o frescor que lhe transparecia em tudo que realizava, deram lugar à austeridade.

A marca de expressão facial contava sua história: ao invés de fissuras nos cantos dos lábios (sinal de que sorrisos se fizeram presentes), tinha a testa marcada por três sulcos violentos, advindos das preocupações corriqueiras que tornavam seu semblante sério e pouco amistoso. O vinco entre as sobrancelhas – fundo, marcado – completava o quadro.

Então naquele dia, entre idas e vindas do balanço, deu-se conta de que as coisas não saíram, afinal de contas, da forma como planejara.

Os acontecimentos atropelaram-se um ao outro e ele não tivera tempo de consertar o rumo. Famílias, amigos, dinheiro. Nada parecia fazer sentido. De repente, até as amantes que tivera lhe pareceram sem propósito.

Começou a lhe bater uma sensação de pânico, nociva e proibitiva, que o oprimia e o fazia se sentir pequeno, fracassado. Subitamente, ao refletir sobre a vida, dera-se conta de que havia sido completa e absolutamente infeliz.

Deixou-se ficar ali.  Absorto em pensamentos, a impassibilidade de seu corpo contrastava com o movimento da cadeira, que balançava de forma ritmada ora para frente, ora pra trás. Fazia frio.